Idealizar a masculinidade afeta toda a sociedade, apontam especialistas

Idealizar a masculinidade afeta toda a sociedade, apontam especialistas

Jeremias* é um negro de meia-idade. Convencido de que buscar ajuda seria uma demonstração de fragilidade incompatível com o ideal de masculinidade que havia concebido a partir do que lhe fora ensinado ao longo da vida, só bateu na porta de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) do Distrito Federal quando , desempregado e vendo as dificuldades aumentarem, admitiu para si mesmo que o sofrimento psíquico que enfrentava havia se tornado persistente e severo.

Já em tratamento, Jeremias foi entrevistado pelo psicólogo Fernando Pessoa, que fazia sua pesquisa de doutorado entre homens usuários do serviço de saúde mental de Brasília. Pessoa buscou entender como o machismo interfere na vida dos homens e na saúde de suas respectivas famílias. Em conversa com Jeremias, o psicólogo percebeu que sua desconfiança tinha fundamento: para muitos homens presos ao modelo hegemônico de masculinidade, a própria doença é vivenciada como um fracasso pessoal e fator de fragilização de suas identidades.

“Vários usuários dos CAPs que entrevistei se sentiam à margem desse modelo. Jeremias, por exemplo, dizia: ‘Sou assim porque não sou homem. E não sou homem porque sinto falta de coisas. Minha esposa disse: ‘Jeremias, não tenho mais fraldas para meus filhos’. O que eu faço? Aqui [no CAPs]UE [Jeremias] Vejo muitos caras trabalhadores que se sentem menos porque não conseguem sustentar a família; não pode ser o que eles esperavam que fôssemos. E aí a gente começa a se perder’”, lembrou Pessoa, reproduzindo a fala de Jeremias que registrou em sua dissertação.

A psicóloga contou o caso nesta sexta-feira (14), durante seminário realizado pelo Ministério da Saúde para promover o debate sobre os efeitos do machismo na saúde da população em geral. Destinado principalmente a gestores públicos e profissionais de saúde, o evento abordou também as formas pelas quais as políticas públicas podem promover formas mais saudáveis ​​para que as pessoas vivenciem as diversas manifestações da masculinidade e da feminilidade.

Atualmente trabalhando na Coordenação de Atenção à Saúde do Homem, do Ministério da Saúde, Pessoa lembrou que a pesquisa acadêmica e a prática profissional são unânimes em apontar os malefícios da falsa ideia de que o homem deve ser viril, competitivo, provedor e aspirar a uma relativa invulnerabilidade .

“Como demonstram as evidências científicas, os homens que adotam padrões tradicionais de masculinidade têm mais transtornos mentais, procuram menos serviços de saúde, têm maiores taxas de suicídio e estão mais envolvidos em situações de violência – especialmente a autoinfligida. [autoagressões, tentativas de suicídio e suicídios]. Também fazem uso mais nocivo do álcool e são mais resistentes ao uso de preservativos. Consequentemente, eles têm uma maior incidência de doenças sexualmente transmissíveis. E também terão menos adesão aos programas de imunização”, listou a psicóloga.

ela própria Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homemvigente desde 2009, corrobora a opinião de Pessoa ao estabelecer a necessidade de o Poder Público “promover uma mudança de paradigmas no que diz respeito à percepção da população masculina em relação aos cuidados com sua saúde e com a saúde de sua família”.

Além disso, há anos a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) vêm apontando a necessidade de as sociedades discutirem a masculinidade, pois, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), “as expectativas sociais em relação aos homens — de serem provedores de suas famílias; ter comportamentos de risco; ser sexualmente dominante e evitar discutir suas emoções ou procurar ajuda – estão contribuindo para taxas mais altas de suicídio, homicídio, vício e acidentes de trânsito, bem como para o aumento de doenças crônicas não transmissíveis”.

Professora do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Thereza Couto destacou que a construção de políticas públicas deve levar em conta a possibilidade de influenciar a construção de modelos de masculinidade que tragam benefícios à saúde e ao bem-estar não apenas homens, mas também mulheres e crianças.

“Aqui [no Ministério da Saúde] é um espaço de gestão muito forte, muito precioso para isso. E já temos, no Brasil e na América Latina, uma produção de pelo menos duas décadas sobre a complexidade do debate em torno do paradoxo do homem que não se responsabiliza por sua saúde, não busca ajuda e quem morre o máximo de causas evitáveis.”

Coordenador da Atenção à Saúde do Homem, do Ministério da Saúde, Celmário Brandão garantiu que a pasta tem o compromisso de “problematizar a condição desses homens e as masculinidades apreendidas pela sociedade, bem como os reflexos do tema no campo das políticas sociais” . A coordenadora geral da Articulação de Atenção Integral do ministério, também psicóloga, Grace Fátima de Souza Rosa, destacou, ao abrir o seminário, que “olhar para as diferentes expressões das masculinidades em nossa sociedade é uma forma de cuidar da saúde do homem e, por meio dele, a saúde da sociedade como um todo”.

O vídeo completo do seminário está disponível em Canal DataSUS no YouTube.

*Nome fictício

Fonte: Agência Brasil